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quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

A Pele que Habito: Vicente e o vestido.

Por Eliana Monteiro

“O corpo estava embrulhado por suave cor de sangue"
Gôzô Yoshimasu

Vicente o que habita o corpo encontrava-se durante uma festa, prestes a estuprar a jovem filha de um respeitado cirurgião plástico. Por este ato Vicente é sequestrado pelo pai da moça e a sua revelia tem seu corpo sexualmente alterado. Ao ganhar novas formas corporais inicia-se um jogo entre o visível e o invisível, entre os gêneros masculino/feminino. Vicente agora é Vera e é sob esta pele que ele habita. Ao olhar-se no espelho não se reconhece, Vicente percebe então, que esta nova imagem sela para ele um novo destino. É preciso existir na desaparição, e para isso buscar rastros, vestígios entre o presente e o passado.

“Sou Vicente, lembra deste vestido?”

O leitor/espectador certamente não esqueceu destas palavras, as últimas ditas pelo personagem Vicente/Vera no filme A Pele que Habito (2011), de Almodóvar. Ao ouvi-las a perplexidade estampa-se nos olhos da antiga amiga e vendedora da loja de roupas. Diante dela o horror do presente. Prontamente a cena estabelece um tipo de incomunicabilidade entre os personagens: Vicente, a vendedora e a mãe dele, que se junta aos dois, quando é dito mais uma vez pelo personagem: “Sou Vicente”. Apesar da afirmação do personagem, Vicente esta ausente.

De imediato tende-se a crer que a ausência seria a negação de uma presença. Diante das duas mulheres outra figura feminina insiste em afirmar ser o jovem Vicente. H.Bergson nos lembra, que aquilo que esta ausente esta, certamente presente em outro lugar ele nos diz ainda que só há ausência em um dado lugar face a uma expectativa desapontada: “só há ausência para um ser capaz de lembrança e de espera”. 

É bom lembrar que Vicente encontra-se há tempos desaparecido (ao longo do filme há cenas da mãe dele registrando na delegacia o desaparecimento do filho e da sua longa espera por ele), na última cena do filme, a figura feminina de Vera se sobrepõe a verdadeira máscara do jovem personagem masculino tão conhecido pelas duas mulheres. O dilema se constitui nisto: numa expectativa desapontada pela lembrança de uma espera.Para as duas mulheres ouvir daquela jovem a afirmativa: “sou Vicente” é, portanto, uma obscenidade. “Há escalas na obscenidade: apresentar o corpo nu pode ser grosseiramente obsceno, mas apresentá-lo descarnado, esfolado, esquelético, o é ainda mais.”

Nesta dualidade corporal Vicente/Vera o personagem se apresenta sem a categoria de identificação: seu corpo foi descarnado e esfolado é impossibilitada qualquer correspondência entre a afirmativa “sou Vicente” e sua existência física. Neste caso, não há reconciliação possível entre Vicente e o novo corpo construído. 

“Quando as coisas se tornam demasiadamente reais, quando elas são dadas imediatamente, quando existem como realidade concreta, quando estamos neste curto-circuito que faz com que as coisas se tornem cada vez mais próximas, estamos na obscenidade”

“Sou Vicente”. Mas, onde esta Vicente? Neste instante há um curto-circuito. A ausência do corpo se realiza na lembrança da espera pelo seu retorno. 

Vicente: o anus, as tripas e o apêndice

O autor português José Gil lembra-nos que o sentido de presença não é algo do campo do individual, mas do coletivo isto é, é preciso que o outro ao nos olhar identifique nos corpos marcas, expressões. Logo, não basta o personagem se dizer ser Vicente para se manifestar uma presença, é preciso que ele a presentifique através de suas marcas para aquelas duas mulheres. “Sou Vicente”, reafirma a jovem. A cena ao soar da fala do personagem ganha dimensões fantásticas: nada se tem a dizer. O silêncio toma conta dos personagens e de nós, espectadores. Sobem os créditos finais do filme. 

A personagem Lulu do romance O Muro de Jean-Paul Sartre encontra-se deitada na cama com Henri quando ouvem um som “gru-gru” provocado por um dos corpos, Lulu então diz: “um ventre que faz barulho me aborrece porque nunca posso saber se é o seu ou o meu (...). São líquidos que gorgolejam nas tripas”.

Nosso personagem experimenta esta desconexão corporal: Vicente/Vera. Neles os líquidos gorgolejam nas mesmas tripas. De Vicente, de seu, da sua própria carne só lhes restou o anus, parte do corpo através da qual não pode ser reconhecido. Há aí uma veleidade física, algo incapaz de lhes trazer presença.

“(...) se lhes mostrassem meu apêndice (...) não o reconheceria. (...). Não pensaria “isto é dela”. (...) Talvez não gostemos dessas coisas por falta de hábito, se a víssemos como vemos nossas mãos e nossos braços, talvez a amássemos (...). ” O anus, o que lhe restou da sua própria carne, embora não seja reconhecível – tal qual o apêndice da personagem de Sartre – inflige a Vicente alguma propriedade do antigo corpo, torna-se para ele o único ponto de conexão com sua antiga existência física que, ao ser ameaçada de violação, o leva a praticar o crime.

A aparição do desaparecido

(Cirurgião) Continua doendo?

(Vicente) Sim.

(Cirurgião) Tentamos anal?

(Vicente) Vai doer mais, não? Espera, hoje comprei um creme lubrificante.

( procura o creme não o encontra nas sacolas, vai ao outro quarto pega a arma e a coloca na bolsa. Antes de voltar para o amante que o aguarda na cama vê, estampada na primeira página de um antigo jornal, a sua foto com a manchete “ Desaparecido”. Vicente beija a foto e retorna ao amante).

(Cirurgião) Vera, rápido. Até que enfim, achei que tinha ido embora. Ainda não.

(Vicente mira e atira no peito do cirurgião).

Assim, Vicente assombra o corpo de Vera com sua presença imaterial. 

As costuras de Louise Bourgeois

Uma das primeiras imagens do filme de Almodóvar remete ao trabalho da artista francesa Louise Bourgeois (1911-2010), em especial a obra Arched Figure,(Figura Arqueada), realizada em tecido no ano de 2004. Nela uma figura feminina (há volume dos seios), encontra-se com o corpo completamente envolvido em tecido no qual há apenas cinco orifícios: dois nos olhos, dois nas narinas e um na boca. Assim, também viveu Vicente ao longo do processo de desencarne do seu copo.

O filme de Almodóvar se estrutura numa tecitura que combina a narrativa com a obra de Bourgeois, nele os dois elementos movem-se juntos. Nesse movimento inscreve-se o contínuo de um tempo marcado, para a artista na infância e para o personagem no tempo “presente”. A linha que os conduz esta centrada no corte tanto dos tecidos quanto na carne de Vicente.

O uso de tecido na obra da artista reflete suas vivencias na infância, quando menina recolhia os retalhos dos tecidos que sobravam das tapeçarias trabalhadas pela mãe. Na época sua mãe por uma questão moral, retirava das figuras dos cupidos retratados nas tapeçarias, as suas genitálias. O trabalho consistia em cortar os pênis e os substituir por flores e frutas de tal modo que, o contemplador das tapeçarias não percebesse o corte. Deste modo, cortes e costuras alinhavaram as experiências de Louise Bourgeois ao longo do tempo de sua infância. A artista ao desenvolver sua arte nos tecidos enreda nos cortes e nas costuras as suas dores.

“O tema da dor é meu campo de trabalho. Dar significado e forma à frustração e ao sofrimento. O que acontece com meu corpo tem de receber uma forma abstrata e formal. (...). Não se pode negar a existência das dores. Não proponho remédios ou desculpas. Simplesmente quero olhar para elas e falar sobre elas. Sei que não posso fazer nada para eliminá-las ou suprimi-las. Não sou capaz de fazê-las desaparecer; elas estão aí para sempre” ) .

Almodóvar através das imagens de Louise (Vicente tem no ambiente de sua clausura, catálogo e livros da artista), traz à tona a dor do seu personagem. Apesar dos fios das linhas cirúrgicas terem costurado nele um novo corpo e uma nova genitália sobraram ainda em Vicente além do anus “ (...) as lágrimas, o muco, a saliva, a cera do ouvido, a bílis, a urina, (...) o pus e o sangue” que ao vazarem para o exterior daquele corpo equivalem a uma manifestação de dor mas também de resistência: é Vicente quem habita aquele corpo e, quanto mais mucos são expelidos de seu interior menos o corpo construído existe por si próprio. Neste caso, não é o corpo o sujeito da trama, mas, e sim, os orifícios deste corpo através dos quais Vicente manifesta suas dores. O personagem, portanto, inscreve-se sob uma perspectiva orgânica, onde tudo se mantém.

Vicente neste sentido assume uma amplitude particular de presença, uma presença subterrânea onde, há uma lógica interna numa situação completamente ilógica. Surge aí um conflito: uma existência interna sob uma aparência exterior que quer impor quem ele deve ser. O corpo costurado procura encobrir com perfeição (tais quais as genitálias das tapeçarias da mãe de Louise) Vicente na sua multiplicidade de presença. Há ali um jogo de forças que através das costuras os faz ficarem juntos: “A costura é uma defesa. Tenho muito medo das coisas que sou capaz de fazer” . 

Assim, os corpos costurados pela artista trazem com eles suas histórias, já o corpo que oculta Vicente é um corpo sem histórias, sem experiências e vivências é somente um corpo modelado que faz dele o que ele é: um corpo sem itinerário. 

Lembra do vestido?

O vestido que veste Vicente é um tubinho florido em vermelho. O modelo de corte clássico é conhecido no meio da moda como uma peça “coringa” isto porque pode ser usado em diversas ocasiões. O vestido no passado alimentava em Vicente uma fantasia sexual em relação à Cristina, vendedora da loja. A última cena do filme se constrói como uma armadilha no tempo, nela, o vestido é a ponte capaz de conduzir os personagens inevitavelmente ao passado, onde os três (Vicente, Cristina e a mãe dele), tem a possibilidade de se encontrarem.

A Cena.

É dia, Vicente chega à loja de roupas. Cristina, a vendedora se aproxima: (Vicente) Não sei por onde começar Cristina

(Cristina) Você me conhece?

(Vicente) Sou Vicente acabei de fugir. Fui sequestrada me fizeram uma mudança de sexo. Olhe (tira a jaqueta de couro vermelha que usa sobre o vestido). 

Lembra deste vestido? Há seis anos disse que lhe daria de presente só para ver como você ficava nele. Você disse que se eu gostava tanto assim dele, deveria usá-lo. Neste momento estamos sozinhas, você lembra?

( mãe se aproximando) Por que estão chorando?

(Vicente) Sou Vicente.

Mas, onde esta Vicente? Não há como encontra-lo sem o reconhecer. O único reconhecimento possível entre eles é o vestido. O elo temporal, portanto, se resume nisso, no entrelaçamento de fios coloridos daquele tecido. O vestido passa a configurar uma distância palpável que ao mesmo tempo os aproxima e, as distancia do jovem Vicente. Tudo esta ali, contido naquela peça de roupa: o passado e o presente, a presença e a ausência, o homem e a mulher. “A vestimenta também é um exercício de memória. Leva-me a explorar o passado. (...). São como orientações na busca do passado”

O vestido torna-se, nos tempos (passado/presente) a representação simbólica de uma vasta rede de relações que reúne diversas sequências de caráter individual entre os três personagens. A peça de roupa, portanto, revitaliza a linha temporal – há tempos interrompida –entre Vicente (o desaparecido), e as duas mulheres. Sendo assim, o vestido torna-se um objeto capaz de libertar Vicente, o invoca, pelo menos por alguns instantes, do escafandro onde vive aprisionado.

Apesar do corpo que veste o vestido não pertencer ao Vicente, ele vive, por alguns segundos no jogo de linhas e cores daquele tecido. É aí que ele se faz reconhecer para a vendedora da loja apesar da sua miséria de descarnado é quando a narrativa do passado impõe aquele corpo uma cena que ele não viveu. Neste momento, o personagem inverte o jogo Vera/Vicente/Vicente/Vera ao levar para o vestido a sua existência, nele Vera não tem presença nem destino.

O vestido inscreve-se, portanto, numa perspectiva onde tudo passa a se corresponder, assumindo entre os personagens uma amplitude narrativa particular “Há seis anos disse que lhe daria de presente só para ver como você ficava nele.” A peça de roupa passa a constituir uma lógica interna e particular entre eles. Como foi dito anteriormente, Vicente nutria na época desejos pela vendedora da loja, portanto, na cena o vestido modela o acontecido entre eles e faz dele (Vicente/o desaparecido), o que ele era. O vestido torna-se naquele instante uma força material que os relaciona no tempo, a ponte dos antigos desejos.

“O tempo vivido, o tempo esquecido, o tempo compartilhado. O que o tempo inflige – pó e desintegração? Minhas reminiscências me ajudam a viver no presente, e quero que elas sobrevivam. Sou uma prisioneira de minhas emoções. É preciso contar sua história, é preciso esquecer sua história. Você esquece e perdoa. Isso o liberta” 

Vicente remete ao vestido sua figura, ao mesmo tempo impõe aqueles que o contemplam a um visível que não se faz presença, no entanto, há nesta aparição uma certeza: “eu respiro, sei que respiro”.

Bibliografia

BAUDRILLARD, Jean. Senhas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2001. BERGSON, Henry. L’évolution créatrice. Paris: PUF, 1959.

BOURGEOIS,Louise. Destruição do Pai/ Reconstrução do Pai. Escritos e Entrevistas (1923-1997). S.Paulo: COSAC & NAIFY,2000.

GIL,José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’Àgua,1997. SARTRE, Jean-Paul. O Muro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. YOSHIMASU, Gôzô. Osíris o deus de pedra. São Paulo: Aliança Cultural Brasil-Japão, 1992.

Notas:

YOSHIMASU, Gôzô. Osíris o deus de pedra. São Paulo: Aliança Cultural Brasil-Japão, 

1992. BERGSON, Henry. L’évolution créatrice. Paris: PUF, 1959, p.166. BAUDRILLARD, Jean. Senhas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2001 p.31 

Idem BOUDRILLARD, p.30 GIL,José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’Àgua,1997. p.105. 

SARTRE, Jean-Paul. O Muro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980 p.91

BOURGEOIS,Louise. Destruição do Pai/ Reconstrução do Pai. Escritos e Entrevistas (1923-1997). S.Paulo: COSAC & NAIFY,2000, p.235. Louise conta em seu diário ter descoberto que a amante de seu pai morava em sua própria casa e que era a sua governanta e professora de inglês.

BOURGEOIS,Louise. Destruição do Pai/ Reconstrução do Pai. Escritos e Entrevistas (1923-1997). S.Paulo: COSAC & NAIFY,2000, p.10

BOURGEOIS,Louise. Destruição do Pai/ Reconstrução do Pai. Escritos e Entrevistas (1923-1997). S.Paulo: COSAC & NAIFY,2000, p. 363

BOURGEOIS,Louise. Destruição do Pai/ Reconstrução do Pai. Escritos e Entrevistas (1923-1997). S.Paulo: COSAC & NAIFY,2000, p. 363

ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. P. 17

BOURGEOIS,Louise. Destruição do Pai/ Reconstrução do Pai. Escritos e Entrevistas (1923-1997). S.Paulo: COSAC & NAIFY,2000, p. 362

Uma das frases escritas na parede do quarto onde o personagem é mantido enclausurado.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Reativando o blog

Em breve vamos reativar o blog, fazendo discussões sobre o Brasil atual, em especial sobre as próximas eleições. Estaremos comentando notícias que aparecem na imprensa.